"O sonho do meu avô, Sergio José dos Santos, era estudar e ser professor. Ele trabalhou como carteiro a vida inteira. Impedido de estudar formalmente, dedicou-se a nos ensinar constantemente sobre sua disciplina favorita, que era História. Seu maior desejo era ver os netos formados". Revela, em tom saudosista, Cláudia Alexandra Silva Santos, mulher negra e professora da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
Sergio José dos Santos/Arquivo da família
O sonho de Cláudia sempre foi trabalhar no Instituto Federal da Bahia (IFBA) - conhecido, anteriormente (entre 1909 e 2008), como Centro Federal Profissional e Tecnológico da Bahia (Cefet-BA). Ainda criança, ela já tinha a convicção de que um dia pertenceria àquele lugar.
Desde cedo, Cláudia, nascida numa ambiência política e de ativismo, cresceu cercada de pessoas que faziam reflexões importantes sobre as transformações sociais que o Brasil precisava para respeitar e incluir a população negra efetivamente. Ela diz se sentir emocionada por fazer parte de tantos momentos de transformação.
Integrante (Kota) do Terreiro São Jorge Filho da Gomeia, localizado em Lauro de Freitas (BA), uma comunidade religiosa de Candomblé Nação Congo Angola, ela é filha de Mametu Kamuricy, neta de Santo de Mãe Mirinha do Portão e bisneta de Santo do Tatetu João da Gomeia.
“Nós, negros e negras, já sabemos o que estamos fazendo, porque dividir, separar, segregar, discriminar nunca foi correto. E nós estamos fazendo o que é certo, que é contribuir para o reconhecimento, valorização e inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena. Agora, estamos tendo um primeiro movimento mais profundo dentro da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica sobre reconhecimento dos saberes tradicionais, através do Programa Nego Bispo”, declara Cláudia.
Atualmente, ela é professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) e Coordenadora da Escola Nego Bispo de Saberes Tradicionais, no IFBA.
“A escolha da professora Cláudia foi de forma natural. Ela é uma pessoa que tem um profundo conhecimento sobre o tema dos saberes tradicionais, e vem construindo, ao longo de sua carreira, uma série de projetos, programas e conhecimentos”, valida a reitora do IFBA, Luzia Mota.
Oriunda de uma família negra, Cláudia realizou o magistério inspirada em suas tias, que foram impulsionadas pelo sonho de seu avô - Sergio José dos Santos. Lecionou, nas redes municipal e estadual, antes de ingressar na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.
Movida pelo desejo de difundir os conhecimentos ancestrais de sua geração, sua atuação sempre incluiu a formação de professores na área da Educação para as relações sociais, além do ensino de inglês e português. Mestre em Estudos Étnicos Africanos e doutoranda em Difusão do Conhecimento, com pesquisa em literatura negra, Cláudia ingressou na Rede Federal em 2008 como professora de língua inglesa.
Luta histórica
“O Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, ao se tornar feriado nacional, nos traz relevância e reconhecimento a todas as ações realizadas durante o mês. Nós passamos o ano todo lutando, mas, em novembro, nós conseguimos reunir e apresentar essa culminância para que possamos lembrar a importância de heróis e heroínas que até hoje são fontes de inspiração para nossas lutas antirracistas”, destaca a reitora Luzia Mota sobre a cultura negra e a luta histórica não só contra o racismo no Brasil, mas também o acesso, permanência e êxito na educação pública, gratuita e de excelência.
Luzia liderou a implementação da Escola Nacional Nego Bispo de Saberes Tradicionais, em toda a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica - uma iniciativa estratégica da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC), atualmente, liderada pela secretária Zara Figueiredo.
Neste contexto, o IFBA é considerado protagonista por estar no estado que tem uma população com cerca de 80% de pessoas autodeclaradas negras (soma de pretos e pardos, conforme critérios do IBGE), segundo informa a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“O programa Nego Bispo, que pretende se tornar uma escola, visa o fortalecimento das políticas afirmativas dentro de todas as instituições da Rede Federal. O IFBA vem, ao longo dos anos, fortalecendo essas políticas com uma série de programas, projetos e políticas, e isso fez com que, naturalmente, fôssemos escolhidos para sediar o programa, que receberá mais de 100 projetos de toda a Rede Federal”, explica Luzia.
Programa Nego Bispo
O Programa Nego Bispo tem como objetivo formar professores, mestres e mestras em saberes tradicionais e visa valorizar e integrar os saberes tradicionais afro-brasileiros, indígenas e quilombolas na formação docente inicial e continuada, contribuindo para uma educação pública mais equitativa, diversa e inclusiva.
Numa perspectiva decolonial, o Programa Nego Bispo visa à promoção dos saberes tradicionais, transformando as práticas pedagógicas e curriculares, aplicando saberes ancestrais dos africanos e afro-brasileiros, dos povos indígenas e das comunidades quilombolas e dos povos de terreiro, contribuindo para o cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação- LDB, por meio das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatório o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena na Educação.
Além disso, tem como objetivo a consolidação das Diretrizes Nacionais Curriculares de Educação Escolar Quilombola — Resolução n° 08, de 20 de novembro de 2012 — e a implementação da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), a que se refere a Portaria n° 470, de 24 de maio de 2024, do Ministério da Educação.
Quem foi Nego Bispo?
Nascido no Vale do Rio Berlengas, antigo povoado Papagaio, hoje município de Francinópolis (PI), Antônio Bispo dos Santos era ativista político, mestre quilombola, lavrador, escritor e professor. Formado pelos ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, em São João do Piauí, tornou-se o primeiro de sua família a ser alfabetizado.
“Enquanto você, ou alguém que aprendeu com você, está ensinando, passando para frente o nosso conhecimento, eu estarei vivo, mesmo enterrado. Mas, se você deixar de ensinar o que eu te ensinei, eu estarei enterrado, mesmo que esteja vivo”, disse Nego Bispo durante uma palestra.
Autor de obras como "Quilombos, modos e significados" (2007) e "A terra dá, a terra quer" (2023), o líder quilombola desenvolveu proposições para compreender os saberes tradicionais dos povos "afro pindorâmicos" — expressão que criou para se referir aos descendentes africanos e indígenas. Integrou a rede de mestres do Encontro de Saberes, lecionando em universidades como Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nego Bispo faleceu em 3 de dezembro de 2023, aos 63 anos.
Diretoria de Comunicação do Conif
Texto: Moacir Evangelista/Conif com supervisão de Marina Oliveira/Conif
Foto: Arquivo pessoal
